quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O texto, meu texto



Metáfora do interpretar: interpretar, entender; interpretar, reproduzir segundo as próprias disposições. Em certo sentido se confundem na definição. Ao interpretarmos, no palco, pode-se dizer que regurgitamos aquilo que assimilamos do outro.

Quer dizer, alguém sempre tem uma profundidade e complexidade próprias, que diluem-se quando torno-me outro dele. A feiúra, a bestialidade; a brandura, a angelitude. Como ele está? Como me parece? Quem é ele? Todas as respostas serão resultado de um ângulo, de uma restrição e de uma estética, de uma impressão conceitual. Nesse fenômeno acentua-se a natureza animalesca ou humanamente sublime, e a possibilidade torna-se essência.

Meu texto também me interpreta, o constituí meu procurador. Nesta relação: quem é escravo e quem é senhor? A resposta, em definitivo, é impossível. Existe uma simbiose: se me calo, ele não existe; se não há meu texto, não há minha pessoa. Fico sem boca, sem mãos, sem gesto, sem expressão. Se o texto quiser existir sem mim, ele será uma peça industrial, objeto. Objeto por que objetivo, que está fora de mim. Um texto sem "eu" é texto morto, sem vida, sem originalidade e expressão; é um ciclo, uma redundância, uma reprodução de outros discursos.

O texto me engoliu, se alimentou de mim para vir a ser. Ele não é por si só, assim como eu também não sou ninguém fora do que é comunicação. Se não interajo, não existo, para mim mesmo e para o interlocutor. Exteriorizar é a chave, para que eu veja a mim mesmo, na mutilação que o outro faz da minha imagem. Essa imagem, mesmo fragmentada é a única possibilidade que eu tenho de me espelhar. Quem confere minha identidade é a platéia; ninguém é dono de títulos, apenas os recebe. Um espelho quebrado é melhor que nenhum.

Dentro dessa fagocitose textual, eu sou assimilado. Isto faz com que o que eu venha a escrever, torne-se uma duplicação forjada na minha própria semiose. O texto não sou eu, é meu dopplegänger. Meu avesso. Meu lado mau até. Fala coisas que eu não autorizei, afirma noções das quais nunca participei. Com suas pernas, ele anda, corre; Com suas asas ele voa. Chega a lugares que jamais imaginei sonhar, esse representante imaginário.

Em suma, o texto me interpreta.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Retratos de autogenia: Um busto


Em filosofia clínica, quando falamos em autogenia, nos referimos ao tópico 30 na estrutura de pensamento [E.P.]. Nossa forma de ser, de existir, pode ser entendida segundo vários tópicos: emoções, raciocínio, pré-juízos, enfim. O tópico em questão nos mostra como os outros tópicos se organizam; nos dá uma visão funcional da pessoa. Os choques tópicos, associações, por exemplo. A ideia de usar imagens e perspectivas para ilustrá-lo veio de uma aula sobre o assunto.
[Clique nas fotos para ampliar]
Mas um aspecto intrigante da autogenia diz respeito às densidades e sublimidades a que ela pode se submeter. Tentaremos, neste post, tratar esta perspectiva de uma forma ilustrativa, mesclando, juntamente, elementos de perspectiva. Com uma câmera de celular em mãos, partimos para a praça do Rosário, situada em Caicó, Rio Grande do Norte. Na praça encontra-se um busto, representando um dos prefeitos da cidade.


[Retrato aproximado da placa exibida na primeira foto]
Capturamos várias imagens, de ângulos diversos, a fim de ilustrar como podemos entender a nossa vizinhança existencial. Lembrando que na verdade esta proximidade se dá, em absoluto, a partir de um enfoque subjetivo. Isto significa que os nossos vizinhos existenciais não são necessariamente aqueles que nos rodeiam, mas o que rodeiam a nossa E.P.. Entretanto, as fotos trazem uma analogia empírica e nos dá margem para outras especulações pertinentes acerca da percepção.


Neste ângulo podemos ver, na aproximação, a fonte da praça e um antigo prédio, que já foi a prefeitura. O foco da câmera, na comparação, é confundida com o foco existencial do busto, caso fosse ele uma pessoa. Traz uma visão horizontal, com foco na arquitetura institucional e histórica, sublinhando uma composição interiorana: a pracinha, com uma fonte singular, cercada de história e de histórias.


Na foto acima, encontramos mais uma vez um quadro interiorano, mas numa proposta diferente da última. Vemos, seguindo do busto em direção ao céu, na sequência: um banquinho; uma planta florida; uma igreja ao lado de um fragmento de arquitetura histórica; um prédio alto junto ao céu. O conjunto daria uma ideia de um hibridade eminente, como um prólogo do desenvolvimento urbano a permear, sorrateiramente, um contexto simples.

Uma proposta nova surge: o prédio moderno é capaz tornar secundário o nosso protagonista. A estrutura à nossa frente preenche toda a perspectiva, dando a impressão de plantas periféricas e céu quase inexistente, como uma visão extremamente urbanista e secular, com raízes no concreto. O busto fita, estaticamente, a magnitude que se levanta por entre e sobre a natureza; ele fita um ápice.
Aqui ao lado, uma perspectiva horizontal. Nos ladrilhos do mosaico, um caminho à frente; os bancos que dão as costas, o desfecho. O elemento de aproximação é a busca, o caminho. O busco o encara.




Aqui está uma das duas perspectivas extremas que mais interessam no texto. O céu, o sublime, as nuvens, ofuscam a imagem da estátua. Os elementos terrestres fazem participação mínima, simbolizados no seu aspecto mais "alto" pelas palmeiras e lâmpadas dos postes.

Ao redor a grama; a terra; o chão; o ladrilho. Lançamos o olhar das lentes ao solo e nada vemos ao redor que não seja do círculo imediato do protagonista. Nos limitamos a ver aqui o que nos circunda direta e objetivamente.

Mas há uma observação: imaginemos, por um instante, que o resultado de composição das imagens se dá por um efeito de zoom. Temos aí mais uma metáfora. Quando aproximamos uma imagem, perdemos seu sentido contextual; enquanto focarmos aspectos específicos demais, perderemos o sentido global.

Em filosofia clínica, os elementos entram proximidade segundo a gestão da E.P., ou seja, segundo a autogenia. Partindo para os exemplos da vida cotidiana, encontramos pessoas que se aproximam de nós pela semelhança da autogenia, pelo que podemos proporcionar no que elas têm de mais relevante. Como colocou Lúcio Packter certa vez em programa de rádio, existem pessoas briguentas que se aproximam enquanto você é capaz de responder à elas com hostilidade. Muitos valentões recuam quando vêem suas vítimas impassíveis diante da agressão ou quando reagem de forma inesperada.

Também seria válido, clinicamente falando, conceber uma aproximação objetiva mesma, tal como sugerido pela fotografia em si. Seria o caso de quando habitamos diferentes ambientes, evocando novas proximidades. Quando mudamos de um bairro carente para uma vizinhança mais financeiramente favorecida teremos elementos novos. Podem surgir também novas formas de funcionamento na E.P. que se diferenciem quando comparadas com as da primeira situação.

Fica a pergunta: quais as suas vizinhanças existenciais?

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Atores e papéis


Sobre o título, é esta comparação que tentaremos resgatar numa espécie de contexto filosófico.

Desde pelo menos um post passado, havia uma referência implícita à esta ideia. Na verdade, um esboço foi apresentado já em participação na II Semana Universitária, realizada na cidade de Caicó, Rio Grande do Norte, promovida pela Universidade Estadual do mesmo estado.

Esforço nascido da tentativa de assimilação de uma disposição que eu julgava bastante incomum e talvez impertinente. Ocorre que meu modo de relacionar com os outros era  e ainda é – bastante reativo, no sentido de que o comportamento estava à mercê do comportamento do outro. Similarmente à um espelho, meu modo de se comportar acompanhava a expressão do interlocutor e reconhecia nisto um fenômeno altérico e inconveniente.

Muitas vezes era inevitável a impressão de inautenticidade, como se nesse acompanhar, meu comportamento pudesse resumir-se à uma mero desempenho de script; assim como o ator que recebe seu texto, e com ele vive, na cena, num momento de inexpressão de si mesmo, como se o personagem fosse uma casca, uma expressão extrínseca, uma vida não sua vida.

Certo é, que, a comparação com o ator entrava num dilema estético, uma vez que, mais tarde foi ele mesmo a responsável por uma maior compreensão da personalidade. Neste espírito, certa vez, preservei o seguinte juízo em arquivos virtuais: 

"No teatro a identidade é a do ator. Mas, mesmo assim, a identidade não pode ser entendida no seu sentido usual. A identidade do ator é o que ele mesmo é enquanto pessoa, mas justamente por ser um ator possui elasticidade na sua identificação no palco. Ele pode assumir vários papéis. Mas é a sua capacidade, tipos de expressão específicos que irão definir sua gama atuacional, ou seja, uma série de personagens passíveis de serem interpretados. No teatro, ou mais facilmente, na televisão, encontramos atores mais cômicos, mais trágicos. A elasticidade interpretativa do ator não vai até o infinito. Entretanto, os personagens que não podem ser por ele interpretados não representam qualquer problema para o ator. Ele reconhece que sua capacidade é limitada e que não pode representar todos os papéis."

Ignorando a necessidade de explicitar conceitos colocados acima, afirmamos que tal apresentação de aspectos tem um caráter bastante revelador quando a referência ao ator poderia ser negativa. Como numa  equivocidade de uma figura gestáltica, penetramos em um maniqueísmo quase perturbador: quando a vontade do espectador define o que é manifestação luminar ou trevosa.

Talvez em função desta equivocidade, a analogia tenha um caráter introdutório, já que a questão procura dados mais profundos. Um conceito que buscamos é o de identidade. Segundo a definição clássica de Parmênides que relembramos através de Enrique Dussel: "o ser é e o não ser não é". Parece óbvia demais para poder nos trazer algo de novo, mas a filosofia ocidental encontrou nela um substrato metafísico importante.

É como se estivéssemos diante de uma linha que demarca o ser e o não ser. A existência objetiva entra em conflito com a existência social e escutamos dizerem que "ele não é ninguém". Dussel associou esta ideologia aos sistemas de dominação social, com ênfase na dominação cultural européia; nós usamo-la como instrumento de análise num foco existencial.

Neste sentido relembramos que para o ator, existem muitos tipos de personagens a serem interpretados e que, pela sua própria limitação, não poderia jamais pretender interpretar a todos. Chegamos ao conceito de gama atuacional, que significa os limites a que chegamos no vivenciar de personagens. Sim, pois somos como contradições ambulantes: uma hora pacífico, outra belicoso; agora jovem, amanhã velho. As situações que vivemos insinuam roteiros e personagens.

"Sou homem, não mulher", "Sou rico, não pobre". O ser e o não ser, cerceiam as possibilidades do sujeito, entendidos dessa forma. O ator diz que não vai interpretar um personagem por quê não é ele: como pode ser? Existe uma limitação técnica no atuar que não se confunde necessariamente com uma limitação de natureza deliberativa. No teatro nos deparamos com atores que pretendem fazer drama, mas sua desenvoltura não conseguem fugir da comicidade. O contrário também ocorre.

Essa metáfora esclarece, num esteticismo, qual o sentido da exclusão de certos papéis. Ser criança é ridículo; ser adulto é ser careta. O ator social não se limita a reconhecer que é incapaz, por desenvoltura própria, de servir a certos papéis, mas acaba por traçar uma linha divisória entre o que pode ser interpretado e o que não pode. É como se um ator censurasse a outro por representar este ou aquele papel.

Mas atores assim existem, eis aí um problema. Vemos surgir, junto com o processo globalizatório e os decretos da diversidade, a multiplicação das aversões e crimes de ódio já existentes desde muito. Xenofobia, sexismo, homofobia. É incrível como, junto com a emergência de certos modelos sociais, vemos surgir, concomitantemente alguém para censurá-los pelo uso da[s] violência[s].

Um exemplo mais ou menos atual seria com relação aos emos. Tribo urbana de comportamentos emotivos, não nega ao público suas demonstrações de afeto, nem nega, frente às barreiras das orientações sexuais, suas paixões. Poderíamos até mesmo arriscar a possibilidade de que a "emofobia" seja uma variação da homofobia, uma vez que, de certa forma, eles compartilham uma fração significativa de um tipo de  comportamento gay – mesmo que a homofobia não os tome como alvo exclusivo; não podemos esquecer, entre outros, as lésbicas.

Sobre a identidade, Zygmunt Baumam esclarece que, na pós-modernidade, tornou-se construída, em paradoxo à identidade herdada. Este fenômeno social é mesmo facilmente detectável, quando fazemos o paralelo histórico: as separações de castas e raças, constituídas no e pelo berço, têm se amortecido. A ideia agora é partir da construção na história do sujeito, na busca pela identidade. Reconhecemos nisto a presença do devir: "você deve passar sua vida toda redefinindo sua identidade", ele coloca em entrevista.

No caso da homofobia, utilizamos o termo "decouro fálico", para nos referir à uma experiência de interpretação que vai além do papel do "macho". Diz-se assim em função do sentimento de desrespeito pelo qual o público é tomado quando se vê que um homem está interpretando o seu papel de forma inadequada ou que não interpreta o papel, de forma alguma; que foge à vivência fálica do machismo. Dessa forma, o ator rechaça, não só a interpretação do personagem, mas muitas vezes, a própria existência do papel.

Portanto, no imenso palco da vida, cada um vive o personagem que consegue viver; respeita o que não é capaz de interpretar.. Utopias?

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Homofobia não existe[?]


Na mesma linha do post anterior, voltamos à temática LGBT. As circunstâncias políticas e virtuais nestes momentos apresentam certa tensão, tendo em vista o já declarado projeto de teocratização do Estado [essencialmente laico]. Como é notável, a empreitada coloca em risco a diversidade de uma forma geral.

Cabe discutir uma ideia quem vem sendo veiculada através da rede. Trata-se de uma investida contra aquilo a que denominamos "homofobia". Tivemos acesso à um dos textos indicados pela psicóloga Marisa Lobo, mais uma vez, via twitter e outro indicado de um usuário simpático à referida.

O primeiro texto encontra-se no site do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira [intitulado "Confirmado: a “homofobia” não existe!"] e, basicamente, seu raciocínio é: homofobia existe apenas enquanto doença, então na ausência de comportamentos "extremos" e "muito específicos" inexistiria a primeira.

Parte-se, ali, de uma premissa etimológica. O elemento "Fobia", relacionado ao medo e aversão, recebe uma associação psiquiátrica necessária. Assim, toda referência à homofobia deve ser uma referência nosográfica e/ou ostensivamente violenta. Entretanto não é exatamente o que ocorre.

Deve-se ter um conceito mais filosófico da linguagem, para que se possa admitir certa flexibilidade no sentido das palavras, especialmente ligadas ao contexto e uso. Sem isto nada poderemos entender do que constitui homofobia hoje.

No caso dos psicólogos, vejamos: psiquê remete à alma, enquanto therapein diz respeito ao cuidado: psicologia, cuidar da alma. Neste sentido, os psicólogos estudiosos ou experimentais seriam destituídos do título, o que seria um absurdo.

O sentido cotidiano é algo dinâmico e complicado mesmo, como já compreendia Wittgenstein ainda no Tractatus, "a linguagem corrente forma parte do organismo humano e não é menos complicada do que ele". Quando tratamos de linguagem corriqueira, portanto, simplificar os sentidos através de uma análise puramente etimológica acaba por tornar-se uma mutilação.

Neste sentido, é preciso recorrer à aplicação de "homofobia" na atualidade, a fim de que não empreguemos sentidos incompatíveis com aquele que expressa-se. O termo tem sido, sim, usado pelo ativismo LGBT, com o propósito de apontar práticas excludentes, vexatórias, humilhantes e desumanas. A violência pode ser exercida de formas simbólicas, na esfera jurídica, familiar, linguística, entre outras.

Para que alguém exerça homofobia, a princípio, não é necessária desfunção psiquiátrica. O texto do IPCO nos apresenta dois aspectos distintos. Um psiquiátrico e outro ideológico. Ambos mutuamente independentes. Sobre o primeiro, na condição de ignorantes da medicina, não podemos senão calar, entendendo que a origem e classificação das doenças não compete à filosofia. Os esforços nosográficos estão nas mão dos médicos.

Cabe ressaltar que não são os homossexuais que tratam como doentes os que vivem a sexualidade segundo outros parâmetros. O sexo entre pessoas do mesmo gênero libertou-se, oficialmente, apenas à um milésimo de segundo [considerada a extensão temporal em que o assunto manteve-se intocado] das associações perversas, relacionadas à doenças, vícios e degenerações. Foram, durante a história, os ditos "normais" que esforçaram-se por "curar" o que hoje entendemos como manifestação intrínseca e legítima da pessoa.

O movimento LGBT, pelo que vemos, furta-se à recomendar remédios, clínicas psiquiátricas, terapêutica psicológica aos heterossexuais. O que querem é respeito, apenas isto. Não se quer a destruição da família; o que se quer é a sua reafirmação como instituição da convivência, calcada na fraternidade. Desde Freud e Lacan, pai e mãe tornam-se, também, elementos simbólicos.

Que atitude tomar diante das mães solteiras e do divórcio? [Também era costumeiro pensar que os filhos sofreriam danos irreversíveis com a separação dos pais]; Dos avós que criam os netos? Dos que crescem em instituições destinadas à órfãos? [Neste último caso, seria então a adoção uma prática compulsória?] 

Diríamos até, que mais implicado no movimento de desagregação das famílias estariam outros fatores dissociados completamente da causa gay. Poderíamos enumerar vários elementos referentes à esta desagregação, mas sigamos.

Se entendermos que a linguagem depende do uso para ganhar seu significado, poderemos compreender também que o uso da qualificação de "homofóbico" é possível dentro de um contexto difamatório. De fato, é concebível que o termo possa ser usado para denegrir. Mas como o significado depende do uso, as palavras mais doces também são capazes de fazê-lo. Seria uma estratégia semelhante quando existe a referência à cristandade e ao paganismo.

Mas admitir que todo apontamento "homofóbico!" seja puramente difamatório é absolutamente discutível. Certa ocasião, colocamos que a identidade bissexual seria uma forma de escudo frente à avaliação social. Assim como ser cristão também pode ser visto como uma forma de projetar-se frente ao conceito social. Todo cristão quer apenas respeito, olvidando a prática que seu credo ensina? Não. Todo bissexual estaria tentando, na realidade, mascarar sua atração por pessoas do mesmo sexo? Absolutamente. Todo aquele que se põe contra a homofobia adota postura difamatória? O raciocínio é bastante simples.

Havíamos citado um segundo texto, mais formal. Faz referência à uma fonte em língua inglesa, registrando seu sentido original. Timidamente consultamos dois dicionários [Aurélio Básico, 1ª Edição; Dicionário Brasileiro Globo, 31ª Edição], ambos desatualizados, não explicitam o termo "homofobia". Recorremos então a fontes digitais.

O dicionário inFormal, livre, coloca o termo como "perseguição direta ou indireta contra indivíduos homossexuais"; O dicionárioweb acrescenta "ódio aos homossexuais, muitas vezes levando à violência física".

É claro que estes dicionários, pelos seus próprios objetivos de uso geral, não serviriam à uma investigação séria. Entretanto, na falta de uma hipótese melhor, somos obrigados a reconhecer que a palavra foi importada na falta de uma opção nativa. Entretanto, partir deste ponto para afirmar que o sentido é exatamente o mesmo no nosso cotidiano, seria puramente especulativo:
"Unindo a barra com a alavanca, aciono o freio." – Sim, suposto todo o mecanismo restante. Só em relação com este mecanismo é ela a alavanca de freio[...] [Wittgenstein, Investigações Filosóficas]
Que termo usar, enfim, em substituição à "homofobia"? Os que reagem ao uso do termo parecem ser incapazes de responder.

Se o que eles defendem é o uso de terminologia adequada para designar aversão e medo aos homossexuais, por quê, então o vácuo quando o assunto é propor algo melhor? A resposta é simples, não existe interesse em denominar este comportamento. Um dos textos refere-se à uma utilização do conceito como arma semântica, mas na falta de um termo para expressar, o fenômeno passaria a não mais existir no campo simbólico, ou seja, se destrói-se a palavra, destrói-se também o reconhecimento da autenticidade do fenômeno. Temos na invalidação de uma palavra, também, uma arma semântica.

Não são psicólogos nem psiquiatras, os que demonstram, com maior pungência a manifestação da homofobia: é a violência contra LGBTs que, por si só, o fazem. Esta que se manifesta como violência social, psicológica, econômica, jurídica; esta que se manifesta na reação ostensiva contra a conquista de direitos previstos na constituição.

Chega-se à conclusão de que a aplicação do sentido psiquiátrico foi absolutamente infeliz e que serve ao propósito de desqualificar um movimento social que busca reconhecimento dos seus direitos. Esta desqualificação sumária e, junto com ela, a aniquilação da democracia, encontram na atualidade forte referência ao cenário religioso – em específico, setores fundamentalistas cristãos, poderiam estar associados à uma afirmação pessoal. Havíamos reconhecido este fenômeno de maneira intuitiva e a registramos na ideia do sagrado a favor da guerra aqui.

Paremos para pensar o quão abusivo isto possa ser: muitos apresentam disposições interiores à hostilidade e a autoafirmação que se funda na destruição do inimigo. Isto é princípio de identidade puramente baseado na comparação, mas estas pessoas são apenas enquanto o outro deixa de ser. Sintamos que a proposta cristã encontra-se do outro lado deste roteiro.

É bem verdade que nos constituímos dentro do, no olhar do e a partir do outro. Essa relação de interdependência entre as identidades [que pode ser descrito metaforicamente no exemplo da alavanca de Wittgenstein] se perverte na relação de desconstrução daquele outro. Seria tal atitude fruto na insegurança íntima? Questões.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Caso Marisa Lobo: tímidas considerações sobre sua carta



Este canal de opiniões volta às atividades, nesta ocasião, precisamente, no intuito de tratar sobre uma questão que preocupa. Uma disputa que vem sendo travada no Brasil atual diz respeito aos direitos dos LGBTs. A decisão tomada pelo STF a favor do reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo parece ter sido um estopim. Levou à revolta de grupos fundamentalistas tanto quanto deu fôlego às nossas lutas e esperanças de uma sociedade mais justa e humana.

Vários desdobramentos têm ocorrido desde então. Ultimamente o caso do kit anti-homofobia, apelidado, indevidamente, ao nosso ver, de kit gay. A desinformação foi flagrante: os meios de comunicação foram, de forma geral, unilaterais; colocando objetivos inverossímeis a respeito. A desinformação aliou-se à uma suposta troca de favores entre as lideranças políticas evangélicas e o PT, levando a Presidenta à suspender o kit.

O Conselho Federal de Psicologia organizou uma passeata em reação à suspensão do kit. Então começa um outro capítulo: A psicóloga Marisa Lobo escreve uma carta ao Deputado Federal Marco Feliciano, questionando a posição: eis uma característica da democracia. Não obstante, existem, no escrito, inconsistências que exigiriam retratação da profissional. Vamos expressar aqui algumas:

  • A referência formal ao kit não é "kit-gay". O termo, vindo daquele contexto, faz eclipse do seu propósito. Ele se destina ao combate da homofobia, não promover a homossexualidade como estilo de vida obrigatório.
  • Afirma que o CFP estaria de "forma pessoal" na campanha. Também afirma que muitos psicólogos não foram consultados. O CFP já esclareceu isto na resposta que deu à psicóloga. A manifestação da instituição foi fruto de construção coletiva.
  • Segundo a carta, existiria uma estimulação sexual precoce ligada ao kit. Mas não se destinaria à crianças. Aparece então uma hipérbole sexual alheia ao kit, na verdade, as cenas parecem ser bastante sutis. Os vídeos retratariam uma realidade que se dá à despeito das opiniões contrárias, em todo o mundo. Nocivizar o vídeo por dar conta de tal realidade nos leva ao passado: se essa realidade deve ser escondida, nada de beijos, abraços, mãos dadas no meio da rua; as crianças podem ver, levando à alguma espécie de dano psicológico. Corolário absurdo: gay e transex, só na calada da noite.
  • Na verdade, quando falamos em kit anti-homofobia, este termo é uma derivação menos formal do projeto inicial, intitulado "Escola sem Homofobia". A cronologia colocada na carta é inverossímil.
  • Coloca que a o conselho agiu de má-fé e de maneira arbitrária. Ora, sem se retratar a respeito das inverdades fundantes da carta, somos impelidos a pensar que não foi o CFP que agiu de má-fé. Marisa parece ser alguém de cultura considerável, autora de vários livros e seguidora daquele mais conhecido no planeta por difundir a fraternidade. A pergunta inicial foi: em que circunstâncias alguém com este perfil escreveria algo assim?
  • O conteúdo audiovisual do kit, que julgamos ser bastante discreto, é relatado como um incentivador sexual, levando à ideia de um sexo resumido à obtenção de prazer. Da forma como foi redigido, parece transparecer uma associação já bem antiga, a dizer que o homossexual procura o sexo por vício, mesmo quando Freud esclareceu equívocos. Assim a comunidade LGBT fica confusa: não se pode casar nem constituir família; não se pode demonstrar afeto; por outro lado não se pode exercer o sexo. Só nos resta então deixarmos de existir na nossa condição. Quem defende tal postura, acaba por tornar defensor daquele que diz: "respeito negros, desde que eles não mostrem a cor da pele (são somos capazes de saber se as nossas crianças poderiam querer tornar-se negras sob influência de sua aparição)". Temos implicações sérias do ponto de vista dos direitos humanos.
  • Ela não é a única a se referir à conteúdos hostis quando fala que o CFP agiu com "truculência". Os opositores da causa sempre são colocados como ditadores. Mas observemos as circunstâncias: um movimento organizadamente democrático age em favor de melhorias para um grupo discriminado; alguém indigna-se do fato e rotula a ação da instituição de "truculenta".
Chegamos à tal situação quando tivemos notícias de uma indicação terapêutica, direcionada à sexualidade, pelo Deputado. Entramos em contato com ambos via twitter (através do perfil @val_yagami). Marisa Lobo foi incapaz de nos dar uma resposta satisfatória, limitando-se a dizer que apenas questionou a decisão do CFP (e que deu a entender que não tratava homossexuais com vistas à subtraí-los desta condição). Já o Deputado não deu nenhum tipo de explicação. O silêncio dos envolvidos intriga e fica a dúvida: qual o sentido da indicação feita via twitter pelo Deputado?

Diante do exposto: a profissionalidade da psicóloga mostra abalo significativo. Poderíamos nos perguntar qual o propósito da Marisa. Seria algum tipo de lançamento político? Por enquanto apenas conjecturas..