quarta-feira, 27 de junho de 2012

Delírios Químicos e Metafísicos



Seguindo a mesma linha do post anterior, vamos nos colocar em frente à tela do fogo cruzado que está atravessando nosso tempo: transcendência versus concretude.

A restrição imposta pelo positivismo à noção de homem tem sua maior utilidade na questão da administração cultural contemporânea dos fármacos, onde foi capaz de justificar a possibilidade da realização do sujeito através do uso de substâncias que agem diretamente nos elementos psico-bio-químicos.  

Numa tentativa de reação, uma palavra muito em uso na consideração das dimensões antropológicas está sendo a holística. Entretanto quero ressaltar que o projeto de categoria holístico não aparece por si só, como uma compreensão integral em si do homem; mas essa mesma compreensão passa pelos aspectos já formalizados pelos estudiosos; portanto essa consideração seria filtrada nas redes tecidas pelo nosso alcance teórico e das possibilidades cognitivas.

Neste sentido, podemos recair o materialismo reforçado na filosofia positivista, podemos repetir o modelo reducionista de subjetividade enquanto produto de um cérebro. Temos em vista que esse parece ser o paradigma atual, portanto determinante na noção de todo.

Mas, em razão mesma desse paradigma, em alguns lugares ou nos lugares acadêmicos determinantes a busca pela holística não vingou e assistimos o espetáculo macabro da implosão sistemática de toda a espiritualidade, de todo o universo místico e religioso; enfim, a destruição da alma humana. A ideia de espírito se tornou uma figura, uma metáfora, uma elemento de literatura, uma quimera que seria avaliada pelas gerações futuras como um atraso significativo nas considerações científicas.

Definir o que vem a ser o holístico nos traria um benefício prático e um prejuízo filosófico, a saber, respectivamente: 1) evitar que desconsiderem aspectos inclusos por outros nos usos futuros do termo e 2) delimitar, restringir o que o futuro reserva aos registros culturais concernentes ao Homem. Que posição tomar? Vamos estabelecer uma referência, apenas: Homem como ser espiritual, psicológico, social, biológico.

Vale distinguir, no tópico da referência do que vem a ser holística, que não existe apenas uma psicologia, mas várias delas aparentemente guiadas por dois eixos principais: comportamento e/ou psiquê. A âncora da primeira encontra-se na manifestação puramente prática e exterior do indivíduo enquanto a segunda tendência se inspira nas concepções metafísicas.

Pois bem, sem fugirmos do assunto, mas entrando no tema metafísica... Delírios! Hoje em dia, delirar é ruim, muito ruim. Tem suas implicações psiquiátricas, sociais e acadêmicas. Por exemplo, um "Deus, um Delírio" de Dawkins. Desconheço os desdobramentos ideológicos no livro mas pelo menos o título não é favorável no contexto de uma gestalt do imaginário: Deus é uma péssima ideia por ser um delírio? Mas no plano químico, o que é um delírio então? Mal-funcionamento das sinapses?...

Dizem-me que tenho que manter-me chumbado à realidade, ser lógico, científico, mas se não posso recorrer à Deus nem à religião para encontrar minhas brechas; também me é vetado o caminho do nonsense como resposta existencial. Aliás, no horizonte puramente secular o divino e o insano pertencem à mesma categoria. As loucuras divinas da antiguidade se repetem mas com um diferencial. É a expressão dos mensageiros dos deuses, só que sem deuses e sem mensagem.

Como meio de transcendência, a contemporaneidade aposta então em um meio que atenda ao seu critério de objetividade e materialização: as substâncias. Ainda busco a felicidade, estados alterados de consciência, sonhos, irrealidades, bem-estar; mas dessa vez ele cabe em coisas pequenas como cigarros, calmantes, cervejas ou em coisas grandes e caras como carros. Neste ângulo a "fuga da realidade" que as pessoas expressam não seria outra coisa senão uma forma alternativa de viver em plenitude.

Mas qual é a posição que a sociedade tem para desclassificar o uso de drogas na busca pela transcendência? Digo, buscamos alegria nos comprimidos mas censuramos quem busca em um cigarro de erva. Me parece que o problema está no sentido que o uso de substâncias dessa natureza adquiriu na contemporaneidade.

Enfim, o que quero propor é: ao secularizarmos a humanidade, pela exclusão da delírio, da fantasia e da mentira, não estaremos desenvolvendo uma nova forma de delirar, fantasiar e mentir?

segunda-feira, 25 de junho de 2012

"Gestalt" do Imaginário



Quando falamos em imaginação, no cotidiano, geralmente nos referimos à uma quimera, um sonho, um devaneio. Situamos o imaginário no reino da mentira e da imagem falsa. A imaginação é subjetiva, está guardada numa caixa obscura e inacessível. Mas a verdade tem uma história: resquícios platônicos da busca incessante por ela já se desenrolam entre os gregos e a luz da verdade aparece. Desde então ela tem sido o compromisso da humanidade. Seus caminhos, a partir da modernidade já despontam em direção aos raciocínios lógicos aliados ao peso da experiência sensível: a verdade é coerente e concreta.

O que é a mentira então? Uma inverdade, algo incompatível com a realidade. A mentira é uma ferramenta, onde delimitamos o que pode ou não ser dito, pensado, considerado. Isso por quê ela é um axioma, já que não sabemos o que é a realidade mesmo buscando-a. O caminho torna-se cíclico formalizado em "buscamos o real; o real é o que buscamos". O imaginário está para a busca para a verdade assim como os sintomas psicológicos estão para as considerações médicas. Jung lembra-nos da postura quando falam: "Não deve ser nada, deve ser apenas psicológico!".

Amamos a verdade e odiamos a mentira. Colocamo-la embaixo de um tapete; distinguimos frequentemente o que são máscaras e o que é a pessoa de verdade; desqualificamos idéias chamando-as de delírios. Painéis, compartilhados pelo facebook comparam tanto religiões como teorias científicas a contos de fadas, que também merecem desconsideração no domínio sério da ciência dos adultos, maduros e racionais.

Nesse processo excludente, o transcendente, a mentira [não real], o sonho... caem em desuso. O sonho! A que chegamos nessa cadeia associativa! Percebemos a gravidade da situação quando nos damos conta de que é proibido sonhar. Já temos em nosso roteiro o que, como e quando devemos sentir e pensar. Surpreendentemente e a despeito de a utopia de Woodstock aparecer retroativamente como "Sexo, Drogas e Rock'n Roll", seus ideais ressoam na ideologia humanitária pela qual lutamos.

Por falar em Woodstock, vamos falar em drogas. Me senti movido quando percebi os esforços de legalização da maconha e quis entender melhor o que se passava e poderia passar. Com efeito, existe uma guerra ou guerras contra as drogas. Podemos imaginar que a droga, como símbolo do imaginário e do irreal possa ser "a bola da vez" num combate maior.

Talvez eu não concorde com o uso de substâncias psicoativas e alucinógenas para fins "recreativos" mas cabe entender "a fuga da realidade" como modalidade existencial. É lugar comum entre terapeutas que o uso dessas substâncias representa um alívio imediato, uma fuga de um problema pela qual a pessoa passa. Mas como assimilar o uso nas circunstâncias sagradas? Ademais uma pessoa não pode lançar mão, em algum momento, de alguma substância como "medicamento"? A despeito disso, a cultura ocidental encabeçada pelos EUA desconsidera essa forma, "da fuga da realidade", como inválida.

Essa proibição seria sustentada pelo horizonte empírico, pela filosofia do terra-a-terra. Em que sentido? Nas considerações da psicologia científica, o ser é capturado nas categorias do comportamento, da normalidade, da experimentação sólida. Portanto, tudo o que se busca é tratar os sintomas através de uma fórmula. Por outro lado, temos uma revolução farmacológica que pode ser descrita como a formalização, racionalização, separação, sintetização do uso de uma classe de substâncias já muito antes utilizadas em contextos sociais e espirituais.

Apesar de ser válida a avaliação terapêutica do uso das drogas como processo de fuga, ele é apenas uma das várias nuances da experiência humana no campo da transcendência. O que parece estar em jogo não é apenas uma questão de saúde, mas motivos políticos, ideológicos e econômicos. Basta perceber que existem complicações existenciais completamente ignoradas tomando como pressuposto o medicamento farmacológico enquanto panacéia da contemporaneidade.

Por quê falo de uma "gestalt do imaginário"? Me refiro a um processo de conceituação como concepção imagética, trazendo de volta a idéia da captura de uma imagem a partir de várias abordagens; um processo linguístico ou cognitivo onde a malha intelectiva se coloca em diversos pontos, diversas posturas, produzindo um sentido diferente. Portanto trata-se de uma metáfora que visa propor uma estética alternativa quando se fala de imaginário, expressando a possibilidade de vermos a "mentira" como positiva.

Talvez, o que caiba mais pertinentemente perguntar é: até onde a demonização da droga é sintomático na relação da cultura com o imaginário? É ruim imaginar?

segunda-feira, 5 de março de 2012

Materialismo e Ateísmo: uma relação contingente.



Uma impressão veio me surpreendeu estes dias. Tenho percebido que os movimentos religiosos têm se afastado das questões sociais, enquanto os movimentos ateístas e neo-ateístas [ao menos os virtuais, aos quais pude ter acesso] têm atuado significantemente a favor dos direitos humanos. Me pareceu um fenômeno bastante peculiar, já que desconstrói a associação comum de que "os ateus são maus e os teístas são bons". O apresentador Datena, da rede Record teria reproduzido esta associação em seu programa, mostrando que ela ainda é bastante atual e presente no meio social.

Então tentei entender melhor a expressividade e a ideologia ateísta. Motivações, comportamentos, objetivos, visão de mundo. Tudo isto de forma bastante intuitiva, descartando análises com vistas à precisão.

As manifestações parecem girar em torno da dissolução de conceitos, partindo do ceticismo niilista. Por outro lado, procuram estabelecer ligações com a ciência oficial e alguns dos seus representantes, como Richard Dawkins. Vindo a pesquisar um pouco mais sobre este contexto, entendi que a ideia se situa dentro de uma filosofia opositora da religião. Numa vice-versão do apresentador citado: "a religião é nociva e os ateísmo é superior".

Entretanto, o ceticismo desdobrado nessa filosofia, encontra seu embasamento no materialismo e naturalismo. Não existiria nada metafísico, nem nada "além da física" ou do material, palpável. Embora possa parecer redundante, tudo o que existe, existiria em sentido material.

Se o materialismo é desprovido de sentido, filosoficamente, em Aristóteles, por exemplo; e cientificamente a partir de Charles Richet, também é verdade que o conceito naturalista, em novo sentido, é confirmado. No seu Tratado de Metapsíquica, estabelece para o leitor a opinião, compartilhada por nós também, que tudo o que existe, existe dentro de certas leis, sendo, portanto, natural ou normal. Descarta-se, neste pensamento, a consideração de milagres e fenômenos sobrenaturais, pois que tudo ocorre dentro da naturalidade.

Curioso, é que mesmo tentando desenvolver um tipo de pesquisa aparentemente ignorada pela ciência oficial, Richet tenha entendido como inaceitável a influência da religião, em específico, do espiritismo, na compreensão destes fenômenos. Para ele, a pesquisa deveria ser inteiramente técnica, sem apelos para a moral, amor, enfim, valores insignificantes para a edificação da ciência, pelo menos a priori.

Pontos de vista compartilhados entre neo-ateus e Richet, poderíamos enumerar a partir das nossas considerações: a necessidade de excluir a religiosidade das investigações científicas; o natural está em foco. Portanto, não temos motivo para associar com necessidade materialismo e ateísmo.

Mas o materialismo e o naturalismo defendidos pelos neo-ateístas invertem a expressão. Se analisarmos bem, a ideia de que "tudo o que existe é natural" veremos que é bastante diferente de "o natural é tudo o que existe". Isto por que nosso conceito de natureza geralmente está limitado ao horizonte dos fenômenos, aos nossos conhecimentos e investigações. Assim, a natureza não se limita ao que podemos considerar, vai muito além. A cada dia construímos um novo conhecimento sobre ela, trazendo à discussão novos elementos.

Um outro aspecto que parece saltar da questão diz respeito à um conceito específico de ciência, restrito a um paradigma atual, enraizado a partir do empirismo lógico. Por força histórica e ideológica, esta ciência alimentou preconceitos de sua própria superioridade em detrimento qualquer outra forma de conhecimento, inclusive das suas bases do senso comum; entre outras características... Então fica difícil percorrer o caminho que leva o neo-ateísmo à ciência, pois muitos pretendem justificar a ciência do paradigma atual por si só, quando na verdade existe a ciência enquanto expressão cultural; existiram e existem várias ciências.

Finalmente fica a incógnita da associação. Por quê, no nosso contexto, muitas vezes ser ateu significa, ao mesmo tempo, ser cético e materialista?