quarta-feira, 27 de maio de 2009

O retorno do Balão...



Balão estampado em multicores parte em busca das jornadas aéreas. Felizes estão seus tripulantes, plenos frente à possibilidade de conhecer novas atmosferas por novas alturas. Mas afim de que o balão consiga atingir altitudes, necessário se faz que despoje-se de pesadas âncoras de saco. Se não permitir-se deixar para trás um pouco de si mesmo, não será possível seguir.

Muitos olham e pensam apreensivos que aquilo era errado: viajar em um balão, arriscando a própria vida, quando se pode permanecer quieto, no solo e na sua retidão horizontalista. Mas querendo ou não o balão fará sua viajem em busca do não sei o quê. É claro que a viagem nem sempre será tranquila e dificuldades obstaculares surgirão.

Entusiasticamente, os tripulantes não desanimam perante os potencialmente desconfortáveis contratempos; e seguem. Enfim, sedentos de lar, retornam. A experiência adquirida na viagem e a alegria de voltar a habitar, geram no ser uma vivência indescritível. Os seres de ontem e de hoje se reúnem num só em evento nutricionante para a alma.

É assim que a vida dos espíritos viajores: habitando empiricamente em lugar algum; habitando emocionalmente no lar que deixou para trás; habitando existencialmente no mundo.

Para alguns, a viagem é o pecado, o erro. Deixar fisicamente o ponto de referência é abandoná-lo em todos os sentidos, porquanto a expressão máxima da dignidade seria o engessamento.

Imperfeitos, não somos, mas estamos e a viagem continuaria de tempos em tempos. Infelizmente separamos ser e estar na nossa língua portuguesa quando na verdade elas se confundem na vivência de diferentes papéis que os sujeitos interpretam.

Dizer que a dialética é a vida constitui uma redundância, já que estamos sempre a enfrentar situações adversas, reabsorvendo-as enquanto podemos. E a dialética é mesmo magnífica pois faz do erro algo momentâneo e natural. Erro é passagem e não instância.

A buscar as sínteses, viajemos...

terça-feira, 5 de maio de 2009

És o que consomes


Estamos em pleno século XXI e não se pode mais separar tacitamente alimentação e responsabilidade. A forma como o nosso comer vem sendo produzido passou por transformações radicais mas não vemos equivalentes nos dispositivos distribuidores de informação. Entretanto, estes mesmos dispositivos sofreram democratizações, vários tipos de informação tornaram-se mais acessíveis. Seria uma comediosa contradição se não fosse tão frustrante perceber que os meios comunicativos têm-se furtado de instruir o público quanto aos aspectos alimentares.

Os métodos modernos de produção de alimentos são cobertos em suas verdades de filme de terror. Marqueteiros cometeram a façanha de vestir Freddy Krueger de Palhaço e fizeram hambúrgueres brotarem de árvores. Se as crianças tomassem conhecimento de pelo menos um quarto da crueldade presente na fabricação de guloseimas carnescas, achariam o palhaço, no mínimo, macabro. Os processos produtivos em andamento e suas funestas consequências são, para o cidadão comum, elemento de um mundo à parte coberto pelos muros da ignorância e do hedonismo.

[Abaixo, um vídeo que mostra Ronald McDonald, o mascote/garoto propaganda da McDonald's, em um comercial de TV que anuncia brindes para as crianças cujo o tema é o filme Bambi da Disney. Bambi seria um privilegiado quando comparamos com o gado de abate.]





Neste sentido, a globalização foi e é fundamental por permitir novos conceitos empresariais. Dentre eles, o das multinacionais: empresas sediadas em um único país mas que possui filiais espalhadas pelo mundo inteiro. Mas o que se espraia no mundo, junto com as respectivas empresas, são suas estratégias produtivas. Elas são igualmente globais e isto significa que o par de tênis que se compraria no interior do Rio Grande do Norte, por exemplo, pode ter vindo, em parte, da Ásia. Acontece, muitas vezes, que as peças de uma produto sejam produzidas em países diferentes e a montagem ainda, pode acontecer em outro lugar distinto.

Este dado evidencia o quanto somos vulneráveis à obscuridade com relação à isto, já que a produção é geograficamente distante. Todavia, não se pode esquecer que encontram-se ao dispor de nossas investigações conhecimentos preciosos até mesmo em humildes manuais escolares. Logo na escola somos informados da política de produção global: as grandes corporações instalam suas indústrias em países em desenvolvimento, aproveitando-se da mão de obra abundante e barata.

Todo este aspecto geopolítico é apenas um parêntese na nossa discussão e nos serve de ilustração. O ato de consumir extrapola a localidade e então o chamado efeito borboleta adquire um sentido econômico. O consumo local afeta o globo. Uma vez de posse destes conhecimentos deveremos acrescentar parâmetros aos institutos de defesa do consumismo. O paradigma atual nos oferece um modelo de consumidor que é, em forma de imagem caricaturalmente alegórica, fina madame à reclamar o melhor para si, sem, no entanto, responsabilizar-se por suas escolhas. Nós, os consumidores do globo, encarnamos esta madame e exigimos as melhores marcas dos piores alimentos. Queremos os venenos mais caros que, além de nos matarem, pouco a pouco, ainda envolvem desgastes alheios, sejam de animais, de outras pessoas mesmo, ou pior, do planeta na suas feições ecológicas.

Se antes dos globalismos comerciais não poderíamos comodamente afirmar que nossa má conduta [e seus resultados igualmente ruins] não afeta ninguém senão nós mesmos, hoje esta afirmação expressa abominável solipsismo. A formação da aldeia global cria, cada vez mais, uma interdependência entre seus habitantes e, ainda, entre suas tribos. Exemplo: o hábito de fumar traz consequências ruins tanto para quem traga como para quem se encontra na condição de fumante passivo; mesmo se o sujeito exerce suas baforadas em solitude, sua saúde [potencialmente] abalada será alvo de dispêndios emocionais [os familiares e amigos sempre sofrem com o sofrimento de um ente querido] e dispêndios financeiros para os males do corpo.

Na produção e consumo alimentícios não acontece muito diferente. Sabe-se que várias doenças são causadas por distúrbios na nutrição. Além disto, os animais são criados, depois "preenchidos" [o que é menos que "alimentados"], e, finalmente, após uma mísera existência de clausuras e torturas, são enfim abatidos. A incoerente importância que as sociedades atribuem ao consumo carnívoro é causa e efeito à um só turno. Decorre ela da filosofia hedônica, aquela que dá primazia aos prazeres imediatos em detrimento de outros aspectos.

Mutilando nossa comida e empobrecendo-a, por outro lado desperdiçamos, sendo-nos forçoso que produzamos ainda mais com o propósito de preencher as lacunas nos índices. Enquanto a comida é desperdiçada na forma de restos de feiras livres; enquanto consumimos, com toda a pompa, toda sorte de supérfluos, irmãos em humanidade penam sob desnutrição e fome aterrorizantes, dignos de protestos significativos mas impotentes por enquanto.

Consumamos sem abrir mão de nossa humanidade: humanidade íntegra, alimentação íntegra, saúde íntegra, planeta íntegro. Somos o que consumimos.

P.S.: Este texto foi inspirado na leitura de Alimentação para um Novo Mundo: a consciência de se alimentar como garantia para a saúde e o futuro da vida na Terra do Dr. Marcio Bontempo.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Sócrates e a dúvida pirrônica


Lembro dos tempos em que atuei como professor substituto de filosofia. Estudava os manuais, ainda no período de aulas introdutórias, à procura dos fundamentos da filosofia e de suas características principais. Assim, deparava-me sempre com afirmações de racionalidade e lucidez. Repassei estes fundamentos de filosofia aliados à maiêutica socrática, mas hoje entendo que deveria ter dirigido as aulas em direção à sapiência.

Sócrates ainda nos deu grande contribuição neste sentido quando fez da verdade um produto da alma, estando ela presente em todos. As pessoas, até mesmo as comuns, poderiam ser tomadas por filósofas, pelo menos em algum sentido; isto é, o exercício filosófico não é nem deve ser restrito à uma classe ou à um grupo social. Na filosofia não há sectarismos e a capacidade analítica individual está, mesmo que potencialmente, presente nas pessoas.

Ele, o estagirita, na condição de fundador oficial da investigação filosófica, fazia questão de afirmar que nada sabia. Esta posição é curiosa por parecer contraditória: como é possível que um homem tido como sábio possa asseverar com tanta tranquilidade que nada sabe? Esta é uma questão que até mesmo os próprios filósofos devem inclinar-se a estudar a fim de esclarecer a própria metodologia do pensamento.

Do nosso ângulo, a questão vem acompanhada de uma resposta serena. Seguir a máxima socrática é opor-se a si mesmo, ao gênio intempestivo que se agita dentro de nós. Isto é necessário pois o conhecimento cria carnes com as nossas, tornando-nos seus hospedeiros. Amamos nossos conhecimentos e à eles nos afeiçoamos com toda a força do coração, reagindo hostilmente à qualquer um que tente impor-se-lhe. Melhor: há mais defesa de si mesmo do que do parasita; é nosso orgulho que, ferido, grita.

Mas que poderia constituir para nós motivo de orgulho? Vivendo em um planetinha do tamanho de nada quando comparamos com a quase inconcebível vastidão universal , e havendo nós surgido no último dia do calendário cósmico, insistimos numa megalomania secular. Como monarcas/déspotas/tirânicos, possuímos todo o poder mas nenhum juízo: os corpos humanos, a genética, a vida, a harmonia; tudo se desfaz. O homo sapiens não está fazendo jus a seu título.

Nosso conhecimento, ainda limitadíssimo, é circunscrito aos nossos terrestres e grosseiros auspícios. Portanto é com razão que Pirro de Épiro, inspirando Michel de Montaigne séculos depois, atestou a dúvida ao conhecimento. O conhecimento não se faz só de provas e de certezas. Tal corrente ficou conhecida como "ceticismo pirrônico". Mas com base na nossa concepção, ceticismo é algo bem incompatível com o pirronismo (o mesmo valeria para o pensamento de Descartes). O critério usado em tal posição, aqui assumida, foi exposta à poucas linhas, a saber, o aspecto simbiótico emocional do saber.

Notamos comumente a presença de pessimistas gnosiológicos, antagonistas carrancudos de tudo o que seja pensamento [principalmente quando não "comprovado cientificamente"]. São eles os céticos. Sua pressa, e muitas vezes truculência, com que abordam não limitados temas é um reflexo da sua ignorância e presunção. Estes querem até mesmo falar e contestar aquilo sobre o qual não estão, pelo menos oficialmente, autorizados. Escapa-lhes que as lacunas no conhecimento são mesmo parte da biografia da humanidade, seja em macro ou micro aspecto.

Então a filosofia torna-se logo um treino íntimo que visa resistir às revoluções internas instintivas quando elas possam atrapalhar o desenvolvimento das nossas permutas no campo do conhecimento. Mais que palavras, sentimos na pele essas revoluções quando discutimos febrilmente com alguém. A capacidade de ponderar sabiamente só é possível quando se está aberto [e isto é um ato emocional] às novas perspectivas.

Hoje entendo, que no campo do ensino de filosofia, deve-se dar primazia à estes aspectos para que os filósofos do futuro não se tornem arrogantes e deseducados em seu íntimo... e mesmo se quiséssemos, não poderíamos concebê-lo: os filósofos aristocratas já são raríssimos e não podemos nos dar ao luxo de sermos ostentadores ociosos; a força das circunstâncias nos induzem, enquanto filósofos, naturalmente à humildade de espírito.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Critérios sociais e sobre exercer medicina hoje: esboços


Muitos se perguntam "qual a utilidade da filosofia?" e esperam que a resposta seja parecida com a que pode surgir de "qual a utilidade da física/química/biologia/medicina [e aqui poderíamos incluir tantos outros]?".

A própria questão nos aponta que a filosofia não pode se encontrar no mesmo nível de contribuição que as ciências mais passíveis de aplicação e de resultados práticos, que significam mais conforto material, mais facilidades, mais alimentos. A filosofia não trabalha nesse sentido, pelo menos não diretamente.

Eu mesmo, tenho que admitir, não sou pessoa indicada para dar qualquer consideração bem séria sobre a utilidade ou função da filosofia. Muitos temos visto que realizaram a tarefa de forma tão complexa que seria preferível trazer-lhes o pensamento e comentar-lhes. Mas infelizmente esta não é a intenção deste texto.

Diríamos nós, a respeito da filosofia [e não dizemos por nós mesmos unicamente, mas a cultura filosófica fala pela nossa boca], que estuda conceitos, revisa e institui critérios. Isto inclui, é claro, a incansavelmente afirmada "atitude crítica". E deixemos qualquer provável discussão sobre o que vem a ser "crítica" para outro momento.

Por isto nossos manuais de filosofia nos dão conta de que ela é radical e racional: esforça-se no sentido de promover debates que não permaneçam na superfície, mas que intentem chegar à raiz do problema, revelando sua profundidade. Este processo é, com efeito, grande construtor de conceitos, criando novas perspectivas, metologias de análise. É como se a filosofia proporcionasse, ao estudioso de outra área do saber, uma subida à tona, para respirar novos ares. Estes mergulhos, entretanto, sempre estão disponíveis ao debate social, à outros novos olhares.

Suas contribuições, se devemos encontrá-las na utilidade imediata, estariam principalmente na ética. Principalmente quando a palavra é usada para nomear um "comportamento correto", sendo corriqueiro e fácil usar expressões como "anti ético". Mas a ética poderia ir além, e seu substrato encontramos nos grandes filósofos clássicos. Apesar disto, a ética têm sido visada pelas instituições de uma forma geral e isto pode ser considerado um avanço em termos de consciência, já que muitos pensadores associam por elos estreitos pensamento e instituições.

Mas mesmo a institucionalização da ética não livrou a sociedade da constante necessidade de rever seus critérios. Um destes critérios que gostaria de citar e tentar avaliar é aquele usado pelas instituições de nível superior. O vestibular, como o próprio nome nos indica, é a principal ou única entrada para as universidades e faculdades. Apresenta-se na forma de um teste de inúmeras perguntas, divididas em objetivas e subjetivas e por disciplina. Os candidatos ao título de universitários deverão demonstrar seus conhecimentos respondendo e acertando à tais questões e até aqui não expusemos nada de novo, só tentamos deixar às claras de que é feita a entrada no meio acadêmico.

É então que algo de estranho nos ocorre e desconfiamos por um momento da objetividade das questões. Cumpririam seu papel de diretismo e precisão? Segundo nossa limitada ótica, não. A brevidade das questões objetivas é o primeiro obstáculo, diminuindo o sentido das questões e, consequentemente, das possíveis respostas, que por sua vez, limitam-se a alternativas de extensão limitadíssima em alguns casos. O segundo obstáculo é justamente esta limitação na possibilidade de respostas e de discussão até da própria questão proposta. Admitindo-se que entre os objetivos das universidades temos o de formar cidadãos críticos, é como se as universidades quisessem recrutar os piores para torná-los melhores.

Neste sentido, a quase recente prova de redação e as perguntas subjetivas são um salto à frente. Mas por quê nos referirmos à perguntas objetivas e subjetivas, quando, na verdade, é o sujeito que responde às duas? Chegamos à conclusão que tal distinção não tem valor teórico, guardando apenas um valor classificatório. Em algumas perguntas podes dar sua própria resposta mas em outras não. Limitante?

É assim que nas universidades encontramos drogados de todas as classes e tipos. Mesma variedade encontra-se no caráter dos sábios e/ou profissionais do nosso futuro. E os primeiros não contentam-se com a maconha, a cocaína e o sagrado álcool [sagrado por quê ninguém ousaria tocar na possibilidade de sua abolição nos meios sociais], mas, pelo contrário, optam pelas mais originais formas de narcose. Nossos futuros profissionais da saúde, nos dizem as notícias televisivas, são pioneiros em usar substâncias inusitadas para tal fim.

Entre outros, temos candidatos à médicos drogando-se no seio das instituições que deveriam propagar o saber, a pesquisa e suas distribuições em "feedback" para o social. Ser médico deve ser realmente uma profissão muito estafante; plena de responsabilidades; de obrigações para com os manuais de anatomia, fisiologia e similares; de obrigações para com os pais, frequentemente responsáveis pelos custos de formação tão melindrosa.

Mas o prestígio social e a segurança financeira bem acessível constituem moeda razoavelmente compensativa, deveremos convir. Que é ser médico? A resposta é bem simples e ser médico é tratar da saúde d'agente. Toda gente? Não. Só as que podem pagar. As que não podem morram à míngua, pois o médico deve trabalhar apenas por aquilo que lhe é pago em recompensa. É assim que a vida de muitos médicos resume-se a sair da universidade, com uma especialização, quem sabe, montar seu próprio consultório e ganhar seu suado dinheiro.

Bem como advogados, os médicos costumam ser cruéis no saldo de suas consultas, mas não adianta correr para os planos de saúde na tentativa de encontrar à disposição um bote financeiro pronto para o salvamento. Nem os planos de saúde encontram-se livres da ganância e da má administração, pelo menos no Brasil. Não temos muitos médicos, então marcar uma consulta com um especialista da área costuma ser tarefa difícil e exige paciência e perseverança, muitas vezes as agendas estão lotadas.

Por quê tão poucos médicos? A formação médica é tão cara assim ou estamos dando valor em demasia à categoria? Optemos pelo estudo da primeira hipótese. Poucos, ocupados e prestigiados médicos: quantos deles? Não tendo a quem recorrer, são eles, em muitos casos, nossa única saída e chamamos aos médicos pomposamente de doutores. Sobre a primeira hipótese vale que lembremos a proposta/programa freiriano, resumido sob a fórmula "de pé no chão também se aprende a ler"; então a formação médica é sofisticada neste sentido, mas essa é uma questão didática.

A pergunta feita no parágrafo anterior, nos remete mais uma vez ao aspecto econômico da formação médica. E por outro lado nos inclina a pensar que muitas vezes que atuar na medicina é como ter a possibilidade de juntar grandes somas em dinheiro e ganhar posição na sociedade de forma relativamente fácil. Onde estão os valores que nos levam ao labor das profissões dignitantes? É prudente usar a "estabilidade econômica"[entre aspas por que a estabilidade econômica é bem menos do que se pode alcançar neste sentido]?

Trabalhar em prol da saúde deve ser trabalhar em prol do coletivo, não apenas em prol do bem estar individual. Ser um bom médico pode ser um médico comum, como descrevemos à pouco, mas somos ganaciosos e queremos sempre mais. Toda esta crítica, que pode na verdade estar causando muitos mal-estares é antes um convite aos valores originários da medicina e realizar aprofundamento à questão aqui seria especular a respeito de Hipócrates. O estudo da teoria médica antiga pode nos fornecer muitas luzes para a prática médica no mundo contemporâneo e quem nos diz é um próprio médico, Luiz Roberto Londres, em seu livro "Iátrica: a arte clínica". Aprofundemos em outra oportunidade.

Atuação e permutas: conduta de gênero


Admitir a condição de nossa sexualidade é muitas vezes embaraçoso. Se nos posicionamos como heterossexuais, logo somos forçados a demonstrar que não mentimos. Os dispositivos provacionais para a heterossexualidade no contemporâneo vêem se sofisticando[?] e ganhando espaço, principalmente entre os jovens. Com excessão de movimentos menos bruscos na sexualidade, tais como emos [que admitem a bissexualidade com uma naturalidade quase normativa] ou punks [que por sua vez preferem a anarquia como parâmetro, não restando muitas restrições], a sociedade quer ver, com seus próprios olhos se seus rebentos não são "machos" o suficiente. Por quê, claro, ser homem, ou melhor, interpretar um homem exige um figurino, um roteiro e falas próprias para que não haja confusão e para que ao final o público possa aplaudir de pé.

Constitui-se ridículo evento a quebra do decoro fálico. Palavrões, por exemplo, sejam largamente admitidos nos scripts dos candidatos. Intolerância também não pode faltar-lhe e tem ele a obrigação de dar o troco na mesma moeda. A mulher, ah, a mulher! Deve ser sua serva e sua contraparte, seu avesso, sendo ele o mandatário e ela sua executora; sendo ele a brutalidade e ela a brandura e etc... não nos demoremos aqui, pois este roteiro nós o temos em mente mui bem, seja com indiferença ou pesar...

Se o macho resolver desenvolver em si a tolerância, se vestir-se de forma menos quadrática, se for mais compreensivo e amável, inclusive com sua esposa, copiando-lhe o feminíssimo hábito de cuidar da casa, estará com seus dias masculinos contados, pois não interpretou bem o seu papel. O público, quando apático ao péssimo espetáculo, deixa os assentos com pesar e lástima. Mas quando o publico se indigna do horror a que assiste, joga podres tomates, num ato de depreciação ao ator incompetente. Esqueceu o texto, e se não esqueceu, pior ainda, o omitiu.

Não se pode, segundo tal roteiro, ser macho longe de bares e, em bem menor grau, de prostíbulos. Pinga nossa de cada dia nos dai hoje para que possamos expurgar nossas angústias, mui custosamente contidas [e é assim que "beber para afogar [ou esquecer] as mágoas" ganha um efeito bem expressivo], permitindo que tenhamos a possibilidade de deixar a nós mesmos para habitar um mundo de narcose, mesmo que temporário e mesmo que tenhamos muita ressaca no dia vindouro.

Por outro lado, que estranho! Meninas ou mulheres são agora designadas como "nêgas". Deixaram de ser Maria, Joana, Lúcia, Andréia [e até mesmo "mulheres"] e passaram a ser tanto objetos tanto de prazer quanto parâmetros adotados a fim de medir quanto vale um homem. Jogamos estranho jogo pois no score [o número de negas contribui muito para uma boa colocação no ranking] de cada participante percebemos pontuações astronômicas sem, no entanto podermos localizar e identificar os jogadores. É um jogo de fantasmas e de sombras.

Se afirmamo-nos como bissexuais então somos indecisos ou covardes. No mundo hetero ou homo é comum ver os bissexuais como pesssoas de sexualidade cambaleante, são como pessoas ingênuas que ainda não sabem do que gostam [e que não soe estranho encontrarmos homens e mulheres, de 30 anos ou até mais, procurando satisfazer curiosidades emergentes]; como pessoas que sabem mesmo o que gostam mas que não sabem é como encarar o fato, inclusive perante a sociedade [é como se ele antevisse a fúria do público caso não interpretasse seu papel devidamente] e/ou usam seus encontros heterossexuais para contradosar os outros encontros, tal como se se encontrassem numa balança. Tais casos obviamente acontecem mas as minorias sabem melhor que as maiorias o quanto os rótulos costumam ser cruéis.

Se nos afirmamos homossexuais, então nos vêem como sapatões e 'viados [abreviação de "desviados", o que, em si, já sugere muito]. Os esteriótipos não são mais brandos neste caso e este é um motivo a mais para não dizer ao público qual papel interpreta. Mesmo os próprios homossexuais, e isto constitui fato curiosíssimo, confessam surpresa frente ao conhecimento de que certo alguém, aparentemente tão homem, seria homossexual. Decerto deveria ele usar vestido e maquiagem? A questão também abrange o outro extremo: quão censurável pode ser um ou uma homossexual com hábitos contrários aos respectivos gêneros? Fulana não deveria ser tão machona e Cicrano deveria rebolar menos.

Mas na verdade, frustados estamos ao nos darmos conta de que a gramática de "homossexualismo" é confusa [e quem sabe até do heterossexualismo também]. Ser homossexual pode significar: se sentir atraído sexualmente por outro do mesmo sexo; manter relações sexuais com os do mesmo sexo. Dentro desta bifurcação há confusão maior quando se leva em conta as variações decorrentes de cada caminho e de suas combinações. Logo, muitas vezes o uso do "homossexual" está em completa obscuridade. Além disso, o próprio fenômeno encontra-se ainda em densa névoa por parte do vulgo que se embaraça na tentativa de buscar-lhe esta ou aquela causa.

Consideremos o sentido mais simples e claro do termo [homossexual enquanto pessoa que sente atração e se relaciona com pessoas do mesmo sexo]. Prossigamos.

Constituindo grupo à parte, mais uma minoria, os homossexuais fazem questão de afirmar sua presença ignorando se ela é chocante ou não. Aqui fiz uma referência indireta mas que agora esclareço: Nanny People, artista conceituada até mesmo pela sua opinião elevada, não esconde de ninguém o que pensa da Parada Gay [Paulista, por certo]. Ao que parece foi sua mentora nos primórdios do evento, expressando por meio dele, reclamações políticas e legais. Ela nos coloca que hoje a festa já não tem mais esse sentido como baluarte, mas o lado cívico tornou-se mero acessório, talvez um pretexto mais sério para a realização do evento. O espírito gay não deve desaparecer das paradas: as cores e trajes berrantes, a música contagiante, a alegria e comicidade peculiares, a maneira positiva de encarar a vida, expressões de afetividade entre pessoas do mesmo sexo, enfim. Mas não deve ser a manifestação confundida com a causa pois as manifestações públicas são realmente meios válidos e autênticos de luta contra o preconceito.

Aliás, falar em preconceito nos meios Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transexuais["GLBT", mais atualmente usado que o conhecidíssimo "GLS" [Gays, Lésbicas e Simpatizantes]] seria semelhante a entrar numa casa de espelhos, onde raios de desprezo se lançam de todos os lados para todos os lados causando distorções e produzindo figuras estranhas e disformes. Normalmente existem richas internas entre os grupos, ocorrendo até mesmo no seio dos próprios, onde existem por vezes a calúnia pelo cochicho. Alguns "discretos" por exemplo, odeiam as "bichinhas".

Portanto não faz sentido reclamar em manifestações vazias em política e mérito. É como se estivéssemos diante de uma "ética das reclamações" e nos inclinamos a dizer a atitude reflexionante foi deixada de lado. É mais fácil exigir do outro que me respeite sem que no entanto eu mova um dedo sequer para fazer-me respeitar: lembremo-nos: respeito não se ganha, se conquista.

O ou a homossexual é parte de minoria, mas não grupo parteado da espécie humana e da civilização. Há de se projetar uma assimilação dos mundos dissonantes, uma nova síntese, pois somos todos particulares na multidão eterna. O grande grupo deve, assim, assimilar digestoriamente o complexo que lhe é exterior.

Nesta discussão é interessante tratar dos armários que prendem ainda aqueles que possuem uma opção sexual incomum. Como poderíamos ver a situação? Uma perspectiva: a falta de autenticidade dos sujeitos levam-os a temerem represálias pelas suas formas de expressão frente à sociedade. A saída é infiltrar-se nela, fazer parte sem abrir mão da sua condição.

Deixemos a concha do partidarismo e mergulhemos no grande mar da diversa humanidade: manifestação consciente, futuro sem hermetismo.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Considerações breves sobre a loucura em Michel de Montaigne



Avidamente temos tentado definir um critério que permita sugerir um limite entre a razão e a loucura.
Busquemos luz para uma possivel metodologia em Michel de Montaigne [Ensaios, Capítulo XII]:

Quem ignora quanto é imperceptível a linha de demarcação entre a loucura e as inspirações mais ousadas de um espírito completamente livre, ou as resoluções que pode tomar, em dadas circunstâncias, uma virtude excepcional?

De fato, dentre tantas definições de loucura, podemos apontar uma referente à falta de limites. A "lógica maluca" do desvairado, já é, em sua aplicação gramática, desordenada por natureza: Montaigne nunca deixa de lembrar aos seus leitores qual o papel do homem perante a lei, seja ela de qual natureza for. Mas nos encontramos frente à um quadro complicado, suas cores são histéricas e orgulhosas; seus contornos são fortes, mas vagos. Tal metáfora é uma pintura do humano.

A lei é, frequentemente, para nós, antes problema que solução e nos debatemos dentro dela assim como o peixe se debate ao mergulhar no nosso mundo atmosférico. Estado de coisas assim faz parecer os humanos seres anárquicos por natureza, desde o berço. Esta agonia se projeta em práticas sociais mais ou menos teóricas, desde os comunistas ou punks. Verdadeira andarilhidade somos forçados a imitar hoje, quando o nada é a instituição querida da humanidade e a ela devemos nossa salvação enquanto espécie biológica.

A generosidade do nosso ego é tão grande, mas, por outro lado, tão voltado a si próprio que por isso mesmo julgamo-nos livres: faremos bem em admiti-lo? Relembrando o pensador francês, a liberdade é condição dos loucos, desvinculados por completo das regras sociais [e então um visionário poderia passar facilmente por louco]. Entretanto, os homens de ciência muitas vezes pretendem uma desvinculação análoga e se julgam donos de si mesmo e de toda a verdade, acima de qualquer autoridade. Seu pensamento é límpido e suas proposições infalíveis. [A vergonha que essa posição engendra nos últimos momentos da vida de um homem é comovedora. Temos tido notícias, desde a antiguidade, de figuras sisudamente teimosas : totalmente impenetráveis. Mas o destino cuidou muito bem delas e as fez recuar diante de tão custosas posturas. Uma curvatura não por consciência mas por força da intempérie vital.]

Desta forma, a loucura e a prepotência encontram-se lado a lado e a filosofia vazia dos sábios de ciência torna-se doidice aos olhos de Deus, conforme insistem os crentes. Sábio verdadeiramente foi Sócrates, afirmando que na verdade nada sabia, compreendendo que a porção de seu saber era insignificante frente à porção da sua ignorância.

Queremos e pretendemos tudo saber quando ignoramos até mesmo nossa natureza íntima e não me refiro aqui às noções distribuídas pela física e pela biologia. Do outro lado dos empirismos. encontramos a metafísica, aquela capaz de acenar uma esperança ao menos. Pois nada nos dizem, neste sentido, as constituições moleculares e celulares. Nossa ética sumiu e estamos procurando por outra melhor, que seja bem natural, produzida em laboratório. Ela transformou-se em bons modos à mesa. O mundo está às claras, mas quem o contempla?

Enquanto na ética a loucura está no sujeito, no materialismo encerra-se sob as disfunções nas disposições orgânicas e nos dispositivos químicos. Ele destituiu o ser humano de sua condição própria de sujeito e transforma-o em aglomerado fisiológico, submetido à lei do instinto disfarçado de psicologia comportamentalista. A lei do comportamento, pelo visto, é a lei mater.

Portanto a razão já aparece como uma forma louca de manifestação do humano. A sabedoria, em seu sentido máximo, e a superação dos racionalismos, é o conhecimento holístico interior, que parte de dentro para o mundo; não se confunde com o pensamento vulgar seja ele refinado ou não. A habilidade de pensar, por si mesma, e de forma estritamente racional, não pôde salvar o homem de seu trágico destino: o da dor, da angústia e da morte.

Aliás, hoje, muito se fala na superação da morte nas perspectivas científicas por técnicas inovadoras. Enquanto o código genético humano é decifrado, vamos esperando, qual mendigos famintos em busca do pão, a vida eterna [tão reportada em textos sagrados, agora podemos comprá-la comodamente em algumas prestações de...]. Ela seria a resposta para todos os medos da humanidade e a chave da felicidade, linda felicidade! Fugindo de seu maior medo, o homem é rebaixado de mengido à vira latas medroso.

Entretanto, poderá mesmo o fim da morte livramo-nos de nós mesmos, dessa outra parte podre que insiste em feder? A despeito do uso abusivo de drogas especializadas na química cerebral, o sujeito findará por permanecer. E enquanto houver sujeito haverá lacuna. Tornaremo-nos imortais, ascendendo aos olimpos divinos... que então iremos fazer? Nossas angústias, logo depois que o comprimido de prozac calar, nos levará à conclusão de que seríamos... não mais felizes, mas pelo menos, quem sabe, menos infelizes.

O louco será mais louco que o inflado douto?