quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Atores e papéis


Sobre o título, é esta comparação que tentaremos resgatar numa espécie de contexto filosófico.

Desde pelo menos um post passado, havia uma referência implícita à esta ideia. Na verdade, um esboço foi apresentado já em participação na II Semana Universitária, realizada na cidade de Caicó, Rio Grande do Norte, promovida pela Universidade Estadual do mesmo estado.

Esforço nascido da tentativa de assimilação de uma disposição que eu julgava bastante incomum e talvez impertinente. Ocorre que meu modo de relacionar com os outros era  e ainda é – bastante reativo, no sentido de que o comportamento estava à mercê do comportamento do outro. Similarmente à um espelho, meu modo de se comportar acompanhava a expressão do interlocutor e reconhecia nisto um fenômeno altérico e inconveniente.

Muitas vezes era inevitável a impressão de inautenticidade, como se nesse acompanhar, meu comportamento pudesse resumir-se à uma mero desempenho de script; assim como o ator que recebe seu texto, e com ele vive, na cena, num momento de inexpressão de si mesmo, como se o personagem fosse uma casca, uma expressão extrínseca, uma vida não sua vida.

Certo é, que, a comparação com o ator entrava num dilema estético, uma vez que, mais tarde foi ele mesmo a responsável por uma maior compreensão da personalidade. Neste espírito, certa vez, preservei o seguinte juízo em arquivos virtuais: 

"No teatro a identidade é a do ator. Mas, mesmo assim, a identidade não pode ser entendida no seu sentido usual. A identidade do ator é o que ele mesmo é enquanto pessoa, mas justamente por ser um ator possui elasticidade na sua identificação no palco. Ele pode assumir vários papéis. Mas é a sua capacidade, tipos de expressão específicos que irão definir sua gama atuacional, ou seja, uma série de personagens passíveis de serem interpretados. No teatro, ou mais facilmente, na televisão, encontramos atores mais cômicos, mais trágicos. A elasticidade interpretativa do ator não vai até o infinito. Entretanto, os personagens que não podem ser por ele interpretados não representam qualquer problema para o ator. Ele reconhece que sua capacidade é limitada e que não pode representar todos os papéis."

Ignorando a necessidade de explicitar conceitos colocados acima, afirmamos que tal apresentação de aspectos tem um caráter bastante revelador quando a referência ao ator poderia ser negativa. Como numa  equivocidade de uma figura gestáltica, penetramos em um maniqueísmo quase perturbador: quando a vontade do espectador define o que é manifestação luminar ou trevosa.

Talvez em função desta equivocidade, a analogia tenha um caráter introdutório, já que a questão procura dados mais profundos. Um conceito que buscamos é o de identidade. Segundo a definição clássica de Parmênides que relembramos através de Enrique Dussel: "o ser é e o não ser não é". Parece óbvia demais para poder nos trazer algo de novo, mas a filosofia ocidental encontrou nela um substrato metafísico importante.

É como se estivéssemos diante de uma linha que demarca o ser e o não ser. A existência objetiva entra em conflito com a existência social e escutamos dizerem que "ele não é ninguém". Dussel associou esta ideologia aos sistemas de dominação social, com ênfase na dominação cultural européia; nós usamo-la como instrumento de análise num foco existencial.

Neste sentido relembramos que para o ator, existem muitos tipos de personagens a serem interpretados e que, pela sua própria limitação, não poderia jamais pretender interpretar a todos. Chegamos ao conceito de gama atuacional, que significa os limites a que chegamos no vivenciar de personagens. Sim, pois somos como contradições ambulantes: uma hora pacífico, outra belicoso; agora jovem, amanhã velho. As situações que vivemos insinuam roteiros e personagens.

"Sou homem, não mulher", "Sou rico, não pobre". O ser e o não ser, cerceiam as possibilidades do sujeito, entendidos dessa forma. O ator diz que não vai interpretar um personagem por quê não é ele: como pode ser? Existe uma limitação técnica no atuar que não se confunde necessariamente com uma limitação de natureza deliberativa. No teatro nos deparamos com atores que pretendem fazer drama, mas sua desenvoltura não conseguem fugir da comicidade. O contrário também ocorre.

Essa metáfora esclarece, num esteticismo, qual o sentido da exclusão de certos papéis. Ser criança é ridículo; ser adulto é ser careta. O ator social não se limita a reconhecer que é incapaz, por desenvoltura própria, de servir a certos papéis, mas acaba por traçar uma linha divisória entre o que pode ser interpretado e o que não pode. É como se um ator censurasse a outro por representar este ou aquele papel.

Mas atores assim existem, eis aí um problema. Vemos surgir, junto com o processo globalizatório e os decretos da diversidade, a multiplicação das aversões e crimes de ódio já existentes desde muito. Xenofobia, sexismo, homofobia. É incrível como, junto com a emergência de certos modelos sociais, vemos surgir, concomitantemente alguém para censurá-los pelo uso da[s] violência[s].

Um exemplo mais ou menos atual seria com relação aos emos. Tribo urbana de comportamentos emotivos, não nega ao público suas demonstrações de afeto, nem nega, frente às barreiras das orientações sexuais, suas paixões. Poderíamos até mesmo arriscar a possibilidade de que a "emofobia" seja uma variação da homofobia, uma vez que, de certa forma, eles compartilham uma fração significativa de um tipo de  comportamento gay – mesmo que a homofobia não os tome como alvo exclusivo; não podemos esquecer, entre outros, as lésbicas.

Sobre a identidade, Zygmunt Baumam esclarece que, na pós-modernidade, tornou-se construída, em paradoxo à identidade herdada. Este fenômeno social é mesmo facilmente detectável, quando fazemos o paralelo histórico: as separações de castas e raças, constituídas no e pelo berço, têm se amortecido. A ideia agora é partir da construção na história do sujeito, na busca pela identidade. Reconhecemos nisto a presença do devir: "você deve passar sua vida toda redefinindo sua identidade", ele coloca em entrevista.

No caso da homofobia, utilizamos o termo "decouro fálico", para nos referir à uma experiência de interpretação que vai além do papel do "macho". Diz-se assim em função do sentimento de desrespeito pelo qual o público é tomado quando se vê que um homem está interpretando o seu papel de forma inadequada ou que não interpreta o papel, de forma alguma; que foge à vivência fálica do machismo. Dessa forma, o ator rechaça, não só a interpretação do personagem, mas muitas vezes, a própria existência do papel.

Portanto, no imenso palco da vida, cada um vive o personagem que consegue viver; respeita o que não é capaz de interpretar.. Utopias?

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